quarta-feira, 27 de julho de 2011

GOTA D'ÁGUA -TEXTOS (Chico Buarque)

Entrada de Joana

Os dois estão dormindo finalmente, estão bem sorrindo ate flutuando, e olhando eles assim fiquei pensando, eles podem acordar de repente, se eles acordam minha vida assim do jeito que esta destrambelhada sem pai sem pão, a casa revirada se eles acordam vão olhar pra mim, vão olhar pro mundo sem entender vão perder a infância, o sonho, o sorriso, pro resto da vida, ouça eu preciso de vocês e vocês vão compreender, duas crianças cresceram pra nada, pra levar bofetada pelo mundo, melhor é ficar num sono profundo com a inocência assim cristalizada.

Ninguém vai sambar na minha caveira vocês estão de prova, eu não sou mulher pra macho chegar e usar como quer depois dizer tchau deixando poeira na cama desmanchada, mulher de malando comigo não, não sou das que suspiram com a submissão. Eu sou de arrancar a força guardada Ca dentro com toda a força do meu peito pra fazer forte o homem que me ama, assim quando ele me levar pra cama eu sei que quem me leva é um homem feito. E foi assim que eu fiz Jasão um dia, agora não sei, quero a vaidade de volta minha garra, minha vontade de viver, meu sonho minha alegria, eu quero tudo contado bem direito, há, biscatinha lambisgoia há Creonte vocês não levaram meu homem fronte a fronte cara a cara peito a peito, vocês me roubaram Jasão com o brilho da estrela que segue e perturba a vida de quem vive a vida na banda apodrecida do mundo, mas tem volta velho safado assim e que não vai ficar ta me ouvindo velho filha dum cão e você também Jasão vê se me escuta que eu descubro um jeito de me vingar.

Monologo do povo

Muito bem Jasão você é poeta perigoso por que de repente esta dando as palavras a intenção que interessa a você, só que essa ansiedade que você vive não e coisa minha não e do infeliz do teu povo seu povo ele sim que a os trancos pendurados nas quinas dos barrancos, seu povo que urgente, coisa cega coração aos pulos, pois carrega um vulcão amarrado pelo umbigo, ele então não tem tempo nem amigo nem futuro que uma simples piada pode dar em risada ou punhalada com uma mesma garrafa de cachaça acaba em carnaval ou desgraça, é seu povo que vive de repente, por que não sabe o que vem pela frente então ele costura a fantasia, sai fazendo fé na loteria se apinhando se esguelhando no estádio, bebendo no gargalo podo no radio sua própria tragédia a todo volume morrendo por amor e por ciúme matando por um março de cigarro se atirando em baixo de carro se você não agüenta essa barra tem mais e que se mandar se agarra na barra do manto do poderoso Creonte e fica lá em pleno corno de sossego dinheiro e posição com aquela mulherzinha.

Mas Jasão já lhe digo o que vai acontecer tem uma coisa que você vai perder que é a ligação que você tem com a sua gente o cheiro dela, o cheiro da rua, você pode da baqueta Jasão, mas samba e que você não faz mais não, não faz ai e que você se atocha por que vai tentar e sai samba ruim essa e a minha maldição, gota d’água nunca mais seu Jasão samba aqui hô nunca você não engana ninguém nunca gota d’água nunca mais nunca mais, vai, vai, vai atrás dela vai corre não é seu poder de ambição? Depressa bebe come lambe goza, mas se quem faz justiça nesse mundo me escutar esse casamento imundo não vai haver não por falta de esposa.

Desabafo de joana para Jasão

Pois bem você vai escutar as contas que vou lhe fazer, te conheci moleque frouxo, perna bamba barba rala calça larga, bolso sem fundo, não sabia nada de mulher ,nem de samba, e tinha um bruto de um medo de olhar pro mundo as marcas do homem Jasão uma a uma em tu tirou todas de mim o primeiro filho, o primeiro prato o primeiro violão, o primeiro refrão o primeiro estribilho ti dei cada sinal do teu temperamento ti dei matéria prima pro teu tutano e mesmo essa ambição que neste momento se volta contra mim eu te dei por engano fui eu Jasão você não se encontrou na rua não você andava tonto quando eu te encontrei fabriquei energia que não era sua pra iluminar uma estrada que eu te apontei.

E foi assim em fim que vi do nada uma alma ansiosa faminta buliçosa uma alma de homem enquanto eu enciumada dessa explosão a o mesmo eu vaidosa orgulhosa de ti Jasão era feliz eu era feliz Jasão feliz e iludida tudo que eu não sabia quando fiz meus dez anos a mais uma sobre vida pra completa a vida que você não tinha e que tava desperdiçando meu alento tava vestindo um boneco de farinha assim que bate um primeiro pé de vento assim que despontou um segundo horizonte La se foi meu homem meu orgulho minha obra completa La se foi pro acervo de Creonte. Certo o que eu não tenho Creonte tem de sobra prestigio posição o teu samba vai tocar em tudo quanto é programa tenho certeza que a gota d’água não vai para de pingar de boca em boca, mas em troca pela gentileza, vai ter que engolia a filha aquela mosca morta como engoli-o meus dez anos é esse seu preço, há dez anos, ate que apareça uma outra porta que te leve direto por inferno há conheço a vida rapaz só de ambição sem amor tua alma vai ficar torta desgrenhada, aleijada pestilenta, aproveitador, aproveitador, aproveitador.

Joana e as vizinhas

Aos falsos inocentes ajudaram a traição são dois brotos das sementes traiçoeiras de Jasão e me encheram, e me incharam e me abriram e me mamaram e me torceram e me estragaram e me partiam e me sacaram, me deitaram, pele e osso Jasão não, cada dia parecia ta mais moço enquanto eu me consumia. e me iam vinham me cansavam me exigiam pediam me corriam me paravam, caiam me amorneciam ardiam com minha larva ganhavam vida coma minha em vão paz guardava com toda vida que tinha, pode me murchar me doe me espremer em todo lugar me, perder me curvar, me envelhecer e quando tempo chegar, vão fazer como Jasão a primeira que passar ele me deixou na Mão, e me estudam e me esfolam, e me escondem, e me esquecem, e me jogam, e me isolam, e me matam e desaparecem Jasão esperou quietinho dez anos pra revirada eu dou mais dez pra Jasão me seguir para a mesma estrada.

E pra não ser trapo nem lixo nem resto objeto nada prefiro ser um bicho a ser essa besta danada. Me arrasto, berro, me Xingo, me mordo, babo, me bato, me mato, bato, me bico, me bico, e me bato, me mato, me bato mato e me bico me bico.

Joana promete

Ódio, ingratidão, humilhação, desprezo, solidão, encho a boca disso cuspo pra dentro, faço um bolo de rancor bem no centro do estomago me contorço de dor, mas vou convivendo com esse tumor, me estrago me arrebento me aniquilo, mas seu disse que pode, pode tranqüilo.

Basta um dia

Pra mim Basta um dia Não mais que um dia Um meio dia Me dá Só um dia E eu faço desatar A minha fantasia Só um Belo dia Pois se jura, se esconjura Se ama e se tortura Se tritura, se atura e se cura A dor Na orgia
Da luz do dia É só O que eu pedia Um dia pra aplacar Minha agonia Toda a sangria Todo o veneno De um pequeno dia.

- Marina faz um favor pra mim mulher vai chamar Jasão, diz pra ele que to aliviada que minha dor ta passando.

Só um Santo dia Pois se beija se maltrata Se como e se mata Se arremata, se acata e se trata
A dor Na orgia Da luz do dia É só O que eu pedia, viu Um dia pra aplacar
Minha agonia Toda a sangria Todo o veneno De um pequeno dia.

Ritual

Ai minha filha vão colher a tempestade, a ira dos centauros e de pomba gira levara seus corpos, a acreditar atira suas almas a vagar na eternidade, os dois vão pagar o resgate dos meus ais, para tanto invoco o testemunho de Deus, a justiça de temi a benção dos céus dos cavalos de são Jorge seus marechais épica te feiticeira das encruzilhadas padroeira da magia Deusa demônia falange de ogum sentaguas da macedônia suas duzentos e cinqüenta e seis espadas vá como negro das trevas peça incendiaria lambreco canheta tinhoso nunca visto fazei desta fiel serva de Jesus cristo de todas as criaturas a mais sanguinária e você salamandra vai chegar a sua vez oxum ore de acordo com a mãe Afrodite vão preparar um filtro que lhe de cistite, corrimento sífilis, cândi e frigidez, quero ver sua vida passada a limpo Creonte, conto com a virgem e o padre eterno, todos os santos todos do céus do inferno, todos os orixás do Olimpo

Veneno

Tudo esta na natureza e encadeado tem movimento, cuspi veneno tristeza, carne, muinho lamento ódio, dor cebola quento, gordura sangue, frieza, sito tudo esta no centro de uma mesma estranha mesa. Misture cada elemento uma pitada de dor, uma colher de fermento e uma gota de temor, o suco dos sentimentos, raiva medo ou desamor, produz novos condimentos, lagrima pus e suor, mas em ver o seguimento intensifica a mistura tempero ódio lagrimento sangalho com tristesura, carnento ver ne moinho, remecha tudo por dentro, passe tudo no moinho, moa carne sangue quento, chore envenene a gordura, você terá um guento uma papa grosa e escura, essência do meu tormento e molho de uma fritura de paladar violento, que engolindo a criatura repara, no meu sofrimento na morte lenta escura, eles pensam que a maré vai mas nunca volta, ate agora eles estavam comandando meu destino e eu fui fui fui recuando recolhendo fúrias hoje eu sou onda solta e tão forte quanto eles me imaginam fraca. Quando eles virem invertida a correnteza quero ver se eles resistem a surpresa e quero saber como eles reagem a ressaca, meus filhos vocês vão La na solenidade e digam e digam a moça que mamãe esta contente tanto assim que lhe preparou esse presente, pra q ela prove como prova de amizade beijem seu pai lhe desejem, lhe desejem felicidade com a moça, e voltem correndo que nos três também vamos festejar a Sois só nos três, também vamos mastigar o napo de eternidade.

Morte

Senhor olhe pra mim, tenha dó vai por que vai, você não deixou, como foi que Creonte farejou meu ganga, responde, aponta uma estrada para quem padece como eu não há nada que me ajude mais do que o padecimento de quem me oprime foi só um momento de alivio que eu pedi, não pode ser, é possível que o pais quis proteger Jasão, e larga os filhos nas esquinas e que se entrega a o canto das Ondinas quis defender Creonte esse ladrão de rosto manhacao de desconfião é justo conservar esse homem vivo, e a filha que mantém Jasão castigo transformando em porcos os seus amigos, o meu ganga meu pai xangô salvou meus inimigos porque motivo, de que serve a vida deles eu tenho que sair ferida abandonada doida sem abrigo não não pode fazer isso comigo meu ganga não não não pode ser você quer eles vivos para que porque. Meu Ganga meu pai xangô quer dizer que tem morte pior que morrer com veneno cortando as entranhas se escorrendo arruinando fazendo a carne virar uma pasta por dentro. É isso senhor afasta de mim essa idéia meu pai, mas não meu ganga é pior é pior que tem razão é esse o caminho que o senhor me aponta ai em cima você toma conta das crianças NÂO vem meus filhos vem, vem, tem comida tem , é isso que senhor quer? Meus filhos mamãe queria dizer uma coisa a vocês chegou a hora de descansar, fiquei pertinho de mim, que nos três juntinhos, vamo embora pra um lugar que parece que assim, é um campo macio e tem jogo de bola, confeitaria, tem circo, musica, muita ave e tem aniversario todo dia, La ninguém briga, ninguém espera, ninguém empurra ninguém meus amores, não chove nunca é sempre primavera a gente deita em beliche de flores mas não dorme, fica olhando as estrelas, ninguém fica sozinho, La não dói, La ninguém vai nunca embora, as janelas vivem cheias de gente dizendo, oi, não tem susto andam bem de vagar e a gente fica La tomando sol, tem sempre um cheirinho de éter do mar e infância perpetuada em formol. A Creonte a filha a Jasão e companhia vou deixar esse presente de casamento, eu transfiro pra vocês a nossa agonia por que meu pai, o sofrimento de conviver com a tragédia todo dia é pior que a morte por envenenamento.


GOTA D’ÁGUA - DE CHICO BUARQUE & PAULO PONTES - BIBI FERREIRA

1. Flor da idade
2. Entrada de Joana (texto)
3. Monólogo do povo (texto)
4. Bem querer
5. Desabafo de Joana para Jasão
6. Joana e as vizinhas (texto)
7. Gota d’água
8. Joana promete (texto)
9. Basta um dia
10. Ritual (texto)
11. Veneno (texto)
12. Morte (texto)


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